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"Considerai a doutrina que se oculta sob o véu de versos insólitos" (Dante, Canteins)

sábado 19 de abril de 2025

CanteinsD

Essa reserva em relação ao esoterismo não impede a consideração da "alegoria  "; esta é tão inerente ao pensamento e à formulação de Dante   que não se pode estudar o Poeta sem constatar seus recursos infinitos e a polissemia resultante, tão propícia a dissuadir os literalistas empedernidos. Encontraremos muitos exemplos ao longo das páginas, mas, previamente, convém identificar as breves passagens que reivindicam ou justificam seu uso: frases-chave lançadas por Dante de passagem, como meias-confidências, que são tanto profissões de    quanto discretos convites ao leitor   para entrar no "jogo  " da analogia, da simbólica, em suma, de uma metalinguagem que, por suas intenções, confina com — e em muitos casos implica — a abordagem esotérica.

A passagem mais decisiva, nesse aspecto  , é Inferno   IX. 61-63. Dante ali afirma os poderes do trobar clus:

"Ó vós [leitores] que tendes são entendimento, considerai a doutrina que se oculta sob o véu de versos insólitos" (versi strani)

Se o poema tem uma aparência ao mesmo tempo   "estranha" e "estrangeira", é porque nele se esconde um   sentido   profundo, uma verdade   secreta que só pode ser   dita com palavras veladas. É o princípio do arcano que, sob a noção de alegoria, Dante enuncia aqui, e encontramos uma versão ainda mais paradoxal em Convivio II.i.3, em uma passagem onde, precisamente, o Poeta se propõe a dizer o que se deve entender por sentido alegórico. Tendo indicado que esse sentido "se esconde sob o manto das fábulas", ele acrescenta sem rodeios: "é uma verdade oculta sob uma bela mentira  ".

Não se pode deixar de aproximar essa explicação daquela dada por Teão de Alexandria sobre o mito  . Tratamos disso, em 1986, no prefácio de O Oleiro Demiurgo (p. 12) e não voltaremos a sua interpretação  ; basta lembrar sucintamente que havíamos aproveitado a fórmula de Teão: "O mito é uma palavra de ficção (logos   pseudes) representativa da verdade" para dar do mito uma definição metafísica  : é um discurso   que diz o que não é (e não que diz o falso) para ensinar o que é (ou seja, essencialmente, o Verdadeiro). É duvidoso que Dante tenha conhecido o texto do retórico grego, mas sua fórmula era suficientemente sugestiva para ter chegado indiretamente ao Poeta florentino: é o que atestaria a expressão parola fittizia empregada na mesma passagem e em II.xii.8,10 e xv.2.

O que é notável é que Dante, não contente em atribuir à alegoria um enunciado aplicável ao mito, assume a paradoxal alquimia   à qual, sob a máscara do "não-verdadeiro", a verdade secreta deve se submeter para poder ser   dita impunemente. Nisso, Dante se revela um mestre da alegoria consciente   do que está em jogo, como mostra, em Inferno XVI. 124, esta alusão precisa do Convivio:

"... à verdade que tem a face da mentira"

Resulta de nossa definição citada acima que se deve entender aqui "mentira" por "não-verdade", o que equivale a dizer, conforme a fórmula muito adequada de R. Holländer (op. cit.), que se trata de uma menzogna vera.

Nesse ponto, a alegoria tende a se confundir com a anagogia, ou seja, com um "sobre-sentido" transcendente ao sentido literal ou imediato, que é apenas a face aparente de um sentido desconhecido   da maioria dos homens, um contexto   que não deixa de lembrar o Livro   selado da Revelação (Apoc.V.1), livro duplo, à imagem   do Livro de Ezequiel   (II. 10), possuindo um sentido interior ou místico (scriptus intus) contido em um sentido exterior ou literal (scriptus foris), o que justifica a polissemia (sensus polysemos) de que se gaba a Epístola XIII a Cangrande della Scala.


Depois do que acabamos de ler  , pode parecer inconsistente da nossa parte termos, no entanto, nos empenhado em escrever   sobre Dante. A resposta é que Dante é aqui tanto o suporte quanto o objeto de nosso propósito: a revelação de uma cristologia dantesca baseada na constatação de uma dupla congruência: por um lado, a Peregrinação de Dante menciona retornos2 tão significativos quanto os já observados em Cristo   ao longo de sua Paixão; por outro, a Divina Comédia   trata precisamente de Mistérios   cristãos dos quais não se falou em nosso último livro sobre esse assunto (Éditions du Rocher 1996). A partir daí, o encanto dantesco certamente operou; limitamos seus efeitos tanto quanto possível. O "poder e o impulso de identificação... em Dante" (J. Risset, op. cit.) culminam em sua assimilação final a Cristo, e é nessa medida que o presente livro prolonga o anterior.


Nos engajamos nisso não sem uma longa preparação. Nos impusemos uma prática constante do texto original da Divina Comédia e a múltiplas incursões no da Vita Nova e do Convivio. Levamos em consideração as traduções, comentários e trabalhos de vários grandes especialistas ou eruditos italianos (Scartazzini, Valli, Tondelli etc.), ingleses (Moore etc.) e franceses. Destes últimos, lemos e examinamos quase tudo   o que pôde aparecer desde o século XIX até hoje. Só os citamos na medida em que sua contribuição nos foi realmente proveitosa. A esse respeito, apesar de sérias discordâncias pontuais, devido à sua inquestionável competência, as publicações de André Pézard foram uma fonte   constante de referência, e isso apesar de sua lamentável decisão de traduzir Dante em francês arcaico. Longe de subestimar o esforço exigido, contestamos sua oportunidade e utilidade4. Isso nos levou a consultar outras traduções, mas também a tentar traduzir nós mesmos passagens particularmente pregnantes. Essas tentativas de tradução só se justificam no contexto em que são feitas; nos foram impostas sempre que as traduções existentes falhavam em reproduzir um detalhe, muitas vezes uma sutileza estilística ou semântica, que era justamente o sal da passagem. Não se deve, portanto, ver nelas a menor preocupação literária: essas tentativas pontuais não são generalizáveis e não competem com nenhuma tradução existente. Trata-se de uma perspectiva diferente. O estudo   da visão   final do Paraíso   nos levou a dedicar a maior atenção a certos aspectos do ensino de Joaquim de Fiore e à posteridade joaquimita. Além dos trabalhos fundamentais de L. Tondelli, M. Reeves e B. Hirsch-Reich (lamentemos, nessa ocasião, a ausência de obra notável em francês) sobre o Liber Figurarum, também levamos em consideração os que tratam da reivindicação dos "Espirituais" franciscanos e da triste história   do fracasso, por parte do Papado, de seu ideal de regeneração da Igreja. Tal ambiente, ao mesmo tempo espiritual, intelectual e político, exerceu sobre Dante uma influência de natureza   totalmente diferente daquela dos eventos, de impacto principalmente afetivo, que o expulsaram de Florença; são estes últimos, mais fáceis de avaliar, que os dantólogos geralmente destacam, embora tenham tido repercussões provavelmente menos profundas e menos importantes sobre a personalidade e o pensamento do Poeta.