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Jordi Rosado: Ulisses no divan

quinta-feira 26 de junho de 2025

Carl Jung   leu o romance Ulisses, de James Joyce  , e depois escreveu um   amargo ensaio sobre sua experiência   com esta obra. Escreveu, por um lado, uma excêntrica análise junguiana do romance e, por outro, um panorama emocional de sua experiência como leitor  , da irritação e do desconcerto que lhe causou sua leitura esforçada de Ulisses, em sua «décima edição inglesa, de 1928», como nos faz notar.

«Não existem nestas 735 páginas, tanto quanto minha vista alcança, nenhuma repetição sensível, nem um único oásis bem  -aventurado onde o leitor sobrecarregado, embriagado de lembranças, possa sentar-se e contemplar com satisfação o caminho   percorrido.»

Jung, o leitor sobrecarregado, já havia escrito seu ensaio Quem é Ulisses?, quando James Joyce, que já então escrevia sua [esta sim] inexpugnável novela Finnegans Wake, foi visitá-lo para fazer   uma consulta sobre a saúde mental de Lucía, sua filha  , que anos depois, em 1962, morreria psicótica em uma clínica suíça. Mas então Lucia sentava-se para trabalhar com seu pai  , e enquanto Joyce escrevia seu romance, ela ia confeccionando, também por escrito, sua própria versão do Finnegans Wake. Lucía enchia um folio após outro de episódios de caótica, onírica, exaltada e transbordante imaginação, elementos que compartilhava com o Finnegans Wake que estava escrevendo seu pai. Jung leu as folhas que a moça havia escrito, fez um diagnóstico psiquiátrico e escreveu a James a resposta à questão concreta que lhe havia sido feita. Joyce lhe dissera que sua filha escrevia igual a ele; ao que Jung respondeu: «mas lá onde o senhor nada  , ela se afoga».

Jung tocou com esse diagnóstico o coração da literatura, essa arte   onde um louco de remate passa, graças à magia   da escrita, por um respeitável novelista.

O próprio Joyce se explicava a si mesmo   com esta ideia: «podemos chegar, tocar e ir embora a partir de átomos e suposições, embora estejamos destinados a ser   apenas possibilidades sem fim  ».

Mais adiante, em seu ensaio sobre Ulisses, Carl Jung aponta: «Que opulência e que… tédio  ! Joyce me entedia até arrancar-me lágrimas, mas é um fastio irritante, perigoso, como não poderia produzir nem mesmo a trivialidade mais enfadonha».

Na metade de seu ensaio o psiquiatra deixa ver o ponto de vista desde o qual analisa o romance de Joyce: «com toda ingenuidade suponho que um livro   quer me dizer algo e que deseja fazer-se compreender; evidentemente, um antropomorfismo mitológico projetado sobre o objeto, sobre o livro». Jung leu Ulisses como se tivesse o romance deitado no divã, desde um ponto de vista psiquiátrico que mais adiante em seu ensaio quando, apesar do tédio, consegue chegar ao final do romance, [nos] descobre que «se abre caminho através das nuvens uma luz   salvadora plena de pressentimentos» e sugere que «pode desatar os espiritualmente atados» e que em Ulisses «com ácidos, vapores venenosos, frios e ardores, se destila o homúnculo de uma nova consciência   universal».

A homenagem de Jung a Joyce é obscura, mas comovente: o psiquiatra que senta a obra no divã, e a encontra psicótica, esquizofrênica, louca e apesar disso, ou talvez por isso, a dá de alta, a envia de volta com seus leitores, certifica que longe de afogar-se, pode nadar.


[Preámbulo: Ulises en el diván. JORDI ROSADO, 5 de diciembre de 2011]