A ciência dos símbolos
A Alegoria
##### EVOLUÇÃO E CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA ALEGORIA
* A concepção antiga e medieval de alegoria aplicava-se a todas as variedades da expressão figurada, embora admitisse uma distinção específica na interpretação espiritual de tipo anagógico e místico, caracterizada pela sua natureza anafórica orientada para o Significador, em contraste com a relação metafórica horizontal entre significante e significado.
* Neste contexto restrito, emerge uma tipologia simbólica distinta da tipologia alegórica convencional, baseada numa dinâmica de prefiguração (*allegoria in verbis*), onde o próprio fato histórico, como a retirada do Egito, transcende o acontecimental para se tornar adventual, possuindo um significado espiritual intrínseco de libertação da alma ou santificação.
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* João Crisóstomo e Tomás de Aquino reforçam esta perspectiva, ensinando que, embora Paulo tenha chamado impropriamente alegoria ao tipo (*ton tupon allegorian ekalesen*), os acontecimentos do Antigo Testamento (*ea quae contingerunt*) devem ser entendidos em ligação com Cristo e a Igreja, sendo privilégio exclusivo de Deus e das Escrituras conferir aos factos históricos um sentido anagógico que nenhuma ciência humana pode aspirar a criar.
* A alegoria teológica difere, portanto, da alegoria poética e retórica, esta última definida pelos gramáticos latinos (Quintiliano, Cícero) como uma metáfora continuada ou uma transição do sentido próprio para o figurado (*Allegoria est cum aliud dicitur et aliud significatur*), e não deve ser confundida com o alegorismo exegético que busca as correspondências profundas entre o sensível e o inteligível numa visão simbólica do mundo.
##### DO SÍMBOLO À ALEGORIA: ARTE MEDIEVAL E O DECLÍNIO DO SÉCULO XV
* O alegorismo tradicional não se opõe ao símbolo, mas encarna-o e torna-o presente magicamente; na arte medieval, as configurações alegóricas oscilam entre a vibração evocativa da arte românica, focada no tema essencial e nas prefigurações do mistério, e a precisão enciclopédica do gótico, que progressivamente evolui para um alegorismo naturalista e descritivo.
* O declínio do simbolismo torna-se evidente no século XV, período de transição analisado por J. Huizinga em *O Declínio da Idade Média*, onde a força do simbolismo se esgota em jogos superficiais e na personificação excessiva de ideias, substituindo a relação misteriosa e profunda por formas visíveis que comprometem o pensamento simbólico.
* A visão medieval do mundo, fundamentada no realismo escolástico e na teologia neoplatônica, concebia uma hierarquia harmônica onde cada coisa extraía a sua essência das ideias universais (*universalia ante rem*), permitindo que objetos humildes como uma noz testemunhassem mistérios teológicos (a amêndoa como divindade do Verbo, a casca como a Cruz).
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* A degradação deste sistema ocorre quando o antropocentrismo transfere o pensamento simbólico para o domínio profano, resultando em alegorias políticas e morais arbitrárias, como as de Chastellain e Molinet, onde peças de vestuário feminino designam virtudes (sapatos como cautela, meias como perseverança), substituindo a conexão de significados essenciais por esquematismos genealógicos indutivos.
##### A SOCIEDADE DO SÉCULO XV: CONTRADIÇÕES E A "REVOLUÇÃO CULTURAL"
* A sociedade do século XV, marcada por um individualismo religioso e uma busca de salvação pessoal mais livre do que se supõe, caracterizava-se por um paradoxo entre um profundo pudor e uma licenciosidade extrema, exemplificada pela exibição de quadros vivos com nudez feminina em festividades públicas (entradas reais de Luís XI ou Carlos V), contrariando a ideia de um moralismo rigoroso, que só surgiria com a Contra-Reforma.
* A mentalidade da época foi profundamente afetada pelas epidemias de peste, gerando uma iconologia bizarra de personificações pagãs, temas macabros e superstições, interpretadas por místicos como Jean Gerson como doenças da imaginação e melancolia diabólica, onde até a Eucaristia era vista como meio profilático contra doenças físicas.
* A verdadeira "revolução cultural" da Renascença inicia-se com a conquista de Constantinopla em 1453 e a subsequente imigração de sábios bizantinos para a Itália, como Gemisto Pléthon e o cardeal Bessárion, que sob a proteção dos Médicis introduziram o platonismo e práticas místico-mágicas, influenciando figuras como Marsílio Ficino e Pico della Mirandola e desafiando a hegemonia aristotélica.
* A nova economia e a expansão do espaço-tempo pelas descobertas geográficas coincidem com a cristalização do pensamento religioso em imagens de *memento mori* e na difusão da "Dança Macabra", uma representação teatral e gráfica que democratizou o medo da morte através da gravura em madeira, prefigurando a moderna civilização da imagem.
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##### ALEGORIA, TEATRO E A ARQUEOLOGIA MODERNA
* O teatro, especialmente o auto-sacramental de Calderón, define a alegoria como um espelho pedagógico capaz de traduzir "o que é por aquilo que não é", estabelecendo uma função coletiva e social distinta do símbolo iniciático, e antecipando mecanismos de personificação que a publicidade moderna utiliza para fetichizar a mercadoria numa pseudo-eucaristia de consumo.
* No século XVIII, Johann Joachim Winckelmann, fundador da arqueologia científica, tentou sistematizar a interpretação dos monumentos antigos no seu *Ensaio sobre a Alegoria*, comparando-a à ideografia egípcia e chinesa, e criticando os tratadistas anteriores como Valeriano Bolzani e Cesare Ripa por basearem-se em conjecturas frágeis.
* A análise crítica das interpretações alegóricas de Boudard e Winckelmann revela, contudo, a perda das chaves cosmológicas e astronômicas; o exemplo da alegoria da "Febre" (mulher deitada sobre um leão) foi erroneamente explicado por eles através de teorias humorais ou zoológicas, quando na realidade referia-se à passagem do sol pelo signo de Leão e à influência da Canícula em agosto, demonstrando o esquecimento das bases naturais do simbolismo antigo.
PS: ALLEAU, René. A ciência dos símbolos: contribuição ao estudo dos princípios e dos métodos da simbólica geral. Isabel Braga. Lisboa: Edições 70, 1982.