JGR: metafísica do grande sertão
III. A Grande Obra
##### A Via Seca e a Ascensão ao Arquétipo do Centro
* O reduto dos jagunços opera como um cadinho da via seca alquímica onde o composto humano é submetido à depuração pelo fogo, processo exemplificado pela morte de Marcelino Pampa, cuja natureza áurea exige que seu corpo, compreendido como escória aurífera destacada do amálgama, seja piedosamente resgatado da lama para não ser maculado por elementos terrestres, uma vez que o fogo que vige nas duas bandas da morte ilumina a iniciação de sua alma.
* O processo de sublimação impulsionado pelos fluidos aéreos impõe a necessidade de elevação vertical ao protagonista e seus companheiros, elegendo o sobrado como o único local apropriado para o comando, o que configura o edifício na narrativa como um Arquétipo do Centro e uma Torre de onde o chefe deve reger o todo, conforme demonstrado pela análise da dinâmica espacial que situa o herói acima da gravidade terrestre.
* A travessia rumo à Torre manifesta a difícil transição e a dinâmica da separação entre o estado de jagunço e o de chefe, marcada por uma progressão aos pulos e rastejante que vitima Jiribibe, o qual, incapaz de transpor da horizontalidade à verticalidade, acaba petrificado no solo como uma aderência terrestre que não resistiu ao fogo celeste, enquanto Riobaldo, num simbolismo de renascimento, atravessa a cozinha-laboratório e a escada em caracol para ressurgir da goela-matriz do sertão como um novo Jonas libertado do útero terrestre.
##### A Sintomatologia Patológica e a Degradação Psicomotora
* Ao adentrar o sobrado, o protagonista inicia uma provação que compromete sua integridade física e psíquica, manifestando sintomas que ele próprio descreve com precisão clínica ao solicitar que se lhe escute o coração e o pulso, revelando um quadro de dificuldades respiratórias, febre, sede intensa e cefaleias perfurantes que simbolizam, sob a ótica hermética, a solidificação que ataca a sede do espírito e exige um aporte de fluidos inexistente naquele ambiente seco.
* A disfunção nervosa progride dos membros superiores para os inferiores, com tremores nas mãos e hesitação nas pernas que o herói tenta contrariar através da força moral de sua vontade, recusando a hipótese do medo e nutrindo ilusões de grandeza semelhantes à apoteose do Tamanduá-tão, embora a realidade somática se imponha através de espasmos faciais incontroláveis e dificuldades na fala que denotam o atingimento severo do cérebro e da capacidade de narração.
* O diagnóstico médico, passível de ser estabelecido pela análise dos sintomas descritos pelo autor-médico Guimarães Rosa, aponta para um quadro de febre tifoide com complicações neuromeníngicas, corroborado pela etimologia da palavra tifo que remete ao termo grego Tufos, significando estupor, estado que o próprio narrador admite conhecer e que explica as náuseas, a astenia, os delírios e a confusão mental que a crença popular, e o próprio protagonista em seu momento de crise, equivocadamente associam à possessão diabólica ou à ação de forças maléficas.
##### O Eixo Metafísico e a Fixação no Sertão
* No clímax do combate, a paralisia do chefe no alto da Torre o transforma em um espectador crucificado, incapaz de agir ou falar, mas com a percepção visual exacerbada, momento em que a imagem do redemoinho se cristaliza tanto no duelo externo entre Hermógenes e Diadorim quanto na desordem interna, unificadas pelo provérbio o diabo na rua no meio do redemunho, que atua como o eixo metafísico onde se fundem a estória, a narração e a escrita, paralisando o fluxo psicomental do herói.
* A interpretação demoníaca do transe é desconstruída pelo testemunho das personagens Guirigó e Borromeu, que confirmam a ausência de sinais clássicos de possessão como o espumar pela boca, e pela própria intuição do protagonista que, num ato falho revelador ou retificação subconsciente, substitui o nome de Satanás pela palavra Sertão, sendo este lapso confirmado oracularmente pelo cego Borromeu, indicando que é a realidade caótica e mineral do Sertão primitivo que opera a fixação e a condensação alquímica do sujeito.
* O desenlace do episódio no sobrado representa a consumação da Obra em Branco, onde a extrema secura e o calor do combate operam a separação final dos componentes do ser, ilustrada pela chegada de Hermógenes como o homem que se desata e pela concomitante desagregação de Riobaldo, cuja alma perde o corpo e cujo espírito ígneo se liberta num precipício branco, concluindo o processo de depuração onde o herói é reduzido à sua essência solitária e atemporal.
PS: UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 1994.