JGR: metafísica do grande sertão

III. A Grande Obra

* **A Estrutura Iniciática e os Ciclos de Metamorfose** * A análise do percurso do protagonista revela a existência de três mortes iniciáticas que pontuam a narrativa, sendo a primeira localizada no Cansanção-Velho após a batalha do Alto dos Angicos e marcada pelo relato de Jõe Bexiguento sobre Maria Mutema, a segunda ocorrendo na encruzilhada das Veredas Mortas à meia-noite do São João de inverno, e a terceira culminando no alto da Torre do Paredão ao fim de uma agonia reveladora. * Estas três mortes constituem o clímax de ciclos distintos associados às sucessivas denominações assumidas pelo narrador, configurando uma evolução que transita do aprendiz Riobaldo para o companheiro Tatarana e finalmente para o mestre Urutu-Branco, estabelecendo um ritmo ternário relativo ao desenvolvimento individual que se entrelaça com uma perspectiva binária coletiva definida pelo assassinato de Joca Ramiro. * A morte de Joca Ramiro atua como uma linha divisória fundamental na coletividade jagunça, separando um tempo de agregação, caracterizado pela convergência para a Sempre-Verde e o julgamento de Zé Bebelo, de um tempo de decomposição que leva à dissolução no Paredão, havendo entre esses períodos o interlúdio da Guararavacã do Guaicuí, que funciona como um parêntese de significação metafísica específica. * **O Aprendizado de Riobaldo e as Primeiras Experiências do Abismo** * O nascimento simbólico do aprendiz Riobaldo na confluência do Rio-de-Janeiro com o Rio São Francisco marca o fim da irresponsabilidade infantil através do domínio do medo sob o influxo do Menino, levando-o a deixar a esfera materna da Fazenda da Sirga, cujo nome evoca o cordão umbilical, para instalar-se na casa paterna em São Gregório, local sob a invocação dos Egregórios, os vigilantes celestes guardiães da sabedoria. * Sob a égide de Joca Ramiro e a proteção de Hermógenes, o protagonista vivencia uma primeira experiência das trevas em uma noite de maio, aproximando-se dos domínios da Grande Mãe Ctoniana e trazendo de lá o encanto mágico da canção de Siruiz, uma emanação do inconsciente coletivo que remete a Sirius, a estrela de Ísis e Osíris, gravando-se em sua memória como um chamado misterioso. * A ruptura com o arquétipo paterno projeta o herói na direção de Zé Bebelo, mas a estabilização é breve, pois a energia deste líder voltada à liquidação das forças obscuras repele Riobaldo, que se sente ligado a essas forças, resultando em uma nova projeção em direção ao Rio das Velhas e ao encontro com o Menino-Reinaldo, que o conduz ao interior do inferno no acampamento de Hermógenes. * A relação com Diadorim, que revela seu nome secreto em Macaúba, é marcada por uma dualidade onde forças ocultas operam a separação na esfera dominada pelos instintos, levando o narrador a uma digressão justificada pelo ódio a Hermógenes e pela antecipação do encontro com Otacília, introduzindo a união dos contrários ou *Coincidentia Oppositorum* no meio da jornada infernal. * A iniciação que coroa este primeiro ciclo é assumida pelo Pai obscuro Hermógenes, cuja violência visceral conduz ao Cansanção-Velho e à história de Maria Mutema, uma representação de Prosérpina e contraparte feminina do satânico Hermógenes, cujo desenlace impõe uma inversão de valores essencial para a compreensão da totalidade. * **A Odisseia de Tatarana e o Parêntese no Paraíso** * A transformação em Tatarana ocorre em um estado embrionário de perda de referências, onde as perspectivas oscilam entre a oferta de comando por Hermógenes e a lembrança dolorosa de Diadorim, cujo retorno após onze dias marca o renascimento de Riobaldo e o afastamento definitivo do Pai obscuro em direção ao Pai luminoso, sob a condução do Andrógino. * O episódio da Guararavacã do Guaicuí configura-se como um *Locus Amoenus* onde o Céu desposa a Terra e a natureza supre as necessidades humanas sem esforço, permitindo aos jagunços reintegrar um Centro fora do tempo linear, um estado de *dolce far niente* às margens do Rio das Velhas, o rio das Mães. * Neste paraíso, o desejo do narrador transcende a componente sexual terrestre e sublima-se na imagem irreal de Diadorim, despertando uma energia interior comparável à Kundalini, a força da serpente enrolada que os iogues buscam despertar para alcançar a iluminação, revelando a essência feminina do companheiro cujo nome detém poder mântrico. * A expulsão deste Éden é provocada pela notícia da morte de Joca Ramiro, lançando Tatarana de volta à busca de um Pai, encontrado na figura sagrada de Medeiro Vaz, o Vazio do Meio, um líder que, tendo passado pelo fogo, não pertence mais inteiramente à terra e comanda sob a égide da Aleluia. * **A Descida aos Infernos e a Transmutação Alquímica** * Sob a liderança de Medeiro Vaz, ocorre a descida ao Liso, as profundezas da Mãe Terrível, onde Tatarana carrega três imagens do arquétipo feminino e onde a liderança de Medeiro Vaz fracassa, mas o protagonista é salvo pela imagem lunar e celeste de Otacília, sendo depurado pelas chamas infernais e preparado para sua própria expedição. * A jornada solitária ao Jequitinhonha resulta na obtenção da Pedra de Araçuaí, um símbolo da transmutação do opaco em translúcido e da materialização da Pedra Filosofal, buscada no extremo oriente de Minas no seio da Terra-Mãe, demonstrando que Tatarana tornou-se apto a assumir a parte do arquétipo paterno. * O retorno de Zé Bebelo inicia o último tempo do companheirismo, que se divide entre a eficácia inicial do comando e o extravio posterior na Fazenda dos Tucanos, onde a Mãe Ctoniana se manifesta, levando o grupo ao inferno do Sucruiú e do Pubo, um universo caótico de fermentação análogo ao caos de Píton. * A travessia deste inferno é realizada por Riobaldo sob o efeito do *thambos*, emergindo como um avatar de Orfeu que retorna do reino de Prosérpina sem olhar para trás, consolidando sua aptidão para a chefia independente e a regeneração das forças coletivas esgotadas. * **A Ascensão de Urutu-Branco e o Exercício do Comando** * Ao assumir a chefia sob o nome de Urutu-Branco, o protagonista busca unificar os contrários, conjugando as energias do Pai e da Mãe, simbolizadas na disposição de sua marcha com um menino preto à esquerda, representando o passado, e um velho branco e cego à direita, voltado para o conhecimento e o futuro. * O encontro na Barbaranha com o dono da casa e a neta de Josafá, seguido pela lição metafísica do Hilário, funciona como uma pausa instrutiva em um nível espiritual superior, preparando o chefe para lançar-se em direção à sua liberdade e às larguras de claridade, embora enfrente a tristeza de Diadorim como uma nota discordante e compensadora de seu excesso de energia *yang*. * O episódio do parto simbólico, onde o chefe facilita o nascimento de um menino também chamado Riobaldo sob a luz da lua, representa um reencontro com a Mãe e um novo começo para o mundo, demonstrando a capacidade do protagonista de atuar como um agente de renovação vital. * Os julgamentos de Constâncio Alves e do homem da égua revelam a dinâmica alquímica da chefia, onde Urutu-Branco, ora endurecido e ora tomado de piedade, utiliza a intervenção da Virgem e a astúcia para restabelecer o equilíbrio, servindo ao gênio do ar no primeiro caso e dissolvendo a negatividade no segundo, transcendendo as categorias morais de Bem e Mal em favor de uma justiça cósmica. * **A Realização Metafísica e a *Coincidentia Oppositorum*** * A travessia vitoriosa do Liso pelo novo chefe, em harmonia com a *Diké*, permite a travessia rápida de um inferno onde a hostilidade desaparece, culminando na eliminação de Treciziano, o último monstro da Mãe Ctoniana, e na captura simbólica da Mulher, num ato que integra valores masculinos e femininos e libera forças primitivas. * A filosofia hermética, taoista e zen-budista permeia a compreensão de que a vontade humana deve adaptar-se às evoluções do Cosmos e do Sertão, sob pena de enfrentar a traição desastrosa da natureza caso se fie em uma imutabilidade ilusória. * A vitória no Tamanduá-tão e a ascensão final à Torre do Paredão representam o ápice do domínio *yang*, mas o nível superior de equilíbrio exige o reconhecimento da componente *yin* no Santo dos Santos; é lá, sob o selo do Raio, que o Conhecimento liberta o chefe da ambição terrestre e permite o desvelamento das chaves metafísicas de seu destino. * O narrador, agora herdeiro de São Gregório e esposo da herdeira de Santa Catarina, atinge a condição de um iniciado que caminha de olhos abertos, tal qual os Gregórios, em busca da união dos opostos no centro onde a luz solar do Pai se funde com a sombra lunar da Grande Deusa Mãe, ecoando a décima *Sefirá* hebraica, *Kether*, e a pureza do grego *Kátharos*.

PS: UTÉZA, Francis. JGR: metafísica do grande sertão. São Paulo, SP, Brasil: Edusp, 1994.