O relato de Melville’s “Bartleby”, que foi objeto de diversas interpretações metafísicas ou teológicas[^Assim escreve Deleuze: “Mesmo enquanto catatônico e anoréxico, Bartleby não é o doente, mas o médico da América enferma, o homem da medicina, o novo Cristo ou irmão de todos nós” (Bartleby oder die Formel. Berlim, 1994, p. 60).], admite também uma leitura patológica. Essa “história provinda da Wall Street” descreve um universo de trabalho desumano, cujos habitantes, todos eles, são degradados a animal laborans. Apresenta-se detalhadamente a atmosfera sombria, hostil do escritório espessamente rodeado de arranha-céus. A menos de três metros ergue-se “alto o muro de tijolos, que se tornou preto por causa da idade e por estar sempre à sombra”. Ao ambiente de trabalho, que parece uma caixa de água, falta todo e qualquer traço de “vida” (deficiente in what landscape painters call “life”). A melancolia e o mau-humor, de que se fala constantemente no relato, forma a atmosfera fundamental da narrativa. Os auxiliares do advogado sofrem todos eles de distúrbios neuróticos. “Turkey”, por exemplo, é acometido por uma azáfama estranha, inflamada, confusa e sem rumo (a strange, inflamed, flurried, lighty recklessness of activity). O auxiliar “Nippers”, exageradamente ambicioso, é atormentado por um distúrbio intestinal psicossomático. Durante o trabalho ele range os dentes e está constantemente xingando. Com sua superatividade e excitação neurótica, eles formam um polo oposto a Bartleby, que se cala e fica como que petrificado. Bartleby desenvolve sintomas característicos da neurastenia. Vista dessa forma, a sua fórmula “I would prefer not to” não expressa nem a potência negativa do não-para nem o instinto inibitório que seria essencial para o “caráter espiritual” (Geistigkeit). Representa, ao contrário, a falta de iniciativa e a apatia pela qual Bartleby acaba inclusive sucumbindo.
A sociedade descrita por Melville é ainda uma sociedade disciplinar. Assim, todo relato está perpassado de muros e paredes, elementos de uma arquitetura da sociedade disciplinar. “Bartleby” é propriamente uma “história de Wall street”. Muro (wall) é uma da palavras mais empregadas. Muitas vezes fala-se de “dead wall”: The next day I noticed that Bartleby did nothing but stand at his window in his dead wall revery. O próprio Bartleby trabalha atrás de uma parede divisória e olha totalmente distraído para uma dead brick wall. O muro sempre vem associado com a morte[^Na tradução vernácula “tabique” (Brandmauer = corta-fogo) ou “parede cega de tijolos” desaparece totalmente o aspecto da morte.]. Não por último o tema recorrente da prisão com fortes muralhas, que Melville chama de túmulos, se aplica também para a sociedade disciplinar. Ali, toda vida foi apagada. Também Bartleby instala-se nos tombs e morre em total isolamento e solidão. Ele representa ainda um sujeito de obediência. Ele ainda não desenvolve sintomas daquela depressão que é uma marca característica da sociedade do desempenho pós-moderna. Os sentimentos de insuficiência e de inferioridade ou de angústia frente ao fracasso ainda não fazem parte da economia dos sentimentos de Bartleby. Ele não conhece autoacusações e autoagressões constantes. Ele não se vê confrontado com aquele imperativo de ter de ser ele mesmo, que marca a sociedade de desempenho pós-moderna. Bartleby não fracassa no projeto de ser eu. O copiar monótono, a única atividade que ele tem de executar, não lhe deixa espaço livre para — onde fosse necessária ou possível — uma iniciativa própria. O que faz Bartleby adoecer é aquele excesso de positividade ou de possibilidade. Ele não suporta o peso do imperativo pós-moderno, de começar a abandonar o próprio eu. Copiar é precisamente a atividade que não admite qualquer iniciativa. Bartleby, que ainda vive na sociedade das convenções e instituições, não conhece aquele exagero de trabalho do eu, que leva a um cansaço do eu depressivo.
A interpretação ontoteológica de Bartleby feita por Agamben, que abstrai de todo e qualquer aspecto patológico, já fracassa nos dados da narrativa. Ela tampouco leva em consideração a mudança da estrutura psíquica da atualidade. Problematicamente, Agamben eleva Bartleby a uma figura metafísica de pura potência: “esta é a constelação filosófica a que pertence Bartleby, o escrivão. Enquanto escriturário que deixou de escrever, ele representa a forma extrema do nada, donde surge toda a criação, e ao mesmo tempo a exigência inexorável desse não, em sua potência pura e absoluta. O escrivão se tornou a escrivaninha, a partir daí ele nada mais é que sua própria folha em branco”[^AGAMBEN. Bartleby oder die Kontingenz. Berlim, 1998, p. 33.]. De acordo com isso, Bartleby incorpora o “espírito”, o “ser de pura potência”, que indica a escrivaninha vazia, na qual ainda nada foi escrito[^Ibid., p. 13.].
Bartleby é uma figura sem referência para consigo mesmo ou algo outro. Ele não tem mundo, está ausente e apático. Se ele fosse uma “folha em branco”, seria porque está esvaziado de toda referência de mundo e de sentido. Já os olhos cansados e turvos (dim eyes) de Bartleby depõem contra a pureza da potência divina, que supostamente ele incorporaria. Pouco convincente é também a afirmação de Agamben de que, com sua recusa teimosa de escrever, Bartleby continua na potência perseverante no poder-escrever, que sua recusa radical ao querer anuncia uma potentia absoluta. A negação de Bartleby, segundo isso, seria anunciante, querigmática. Ele incorpora o puro “ser, sem qualquer predicado”. Agamben transforma Bartleby num mensageiro angélico, num anjo da anunciação, que no entanto “não afirma nada de nada”[^Ibid., p. 40.]. Mas Agamben ignora que Bartleby rejeita todo “curso do mensageiro” (errand). Assim, ele se nega teimosamente a ir ao correio: “Bartleby”, said I, “Ginger Nut is away; just step round to the Post Office, won’t you?” [...] “I would prefer not to”. Sabe-se que a história se encerra com o pós-relato estranho de que Bartleby teria trabalhado por um tempo como empregado em uma agência de cartas mortas, não entregues (Dead Letter Office"): “Dead letters! Does it not sound like dead men? Conceive a man by nature and misfortune prone to a pallid hopelessness, can any business seem more fitted to heighten it than that of continually handling these dead letters and assorting them for the flames?” Cheio de dúvidas, clama o advogado: “On errands of life, these letters speed to death”. A existência de Bartleby é um ser negativo para a morte. A interpretação ontoteológica de Agamben que eleva Bartleby a anunciador de uma segunda criação, de uma “des-criação”, contradiz essa negatividade; essa “des-criação” dissolve as barreiras entre aquilo que foi e aquilo que não foi, entre o ser e o nada.
É bem verdade que, em meio aos tombs, Melville deixa surgir uma minúscula semente de vida, mas frente à massiva desesperança, a massiva presença da morte, a pequena mancha de relva (imprisoned turf) como que dá ênfase à negatividade do reino dos mortos. Também a palavra de consolo que o advogado dirige ao preso Bartleby soa totalmente inútil: “Nothing reproachful attaches to you by being here. And see, it is not so sad a place as one might think. Look, there is the sky and here is the grass”. A isso Bartleby responde não muito impressionado: “I know where I am”. Agamben aponta tanto o céu quanto a relva como sinais messiânicos. A pequena mancha de relva como único sinal de vida em meio ao reino dos mortos reforça ainda mais o vazio sem esperança: “On errands of life, these letters speed to death” é, quem sabe, a mensagem da narrativa. Todos os esforços em favor da vida levam à morte.
O artista faminto de Kafka, ao contrário, não está carregado com essas ilusões. Sua morte, da qual ninguém se dá conta, dá um grande alívio aos envolvidos, um “desafogo inclusive para os que têm o sentido embotado”. Ora, sua morte abre espaço para a jovem pantera, que encarna a alegria despretensiosa da vida: “os guardas lhe traziam, sem refletir muito, o alimento que ela mais gostava; parecia-lhe nem sequer ter perdido a liberdade; esse corpo nobre, dotado de tudo que é necessário até quase para dilacerar, parecia trazer consigo ainda a liberdade. Quando mastigava, em parte alguma parecia-lhe que essa desaparecia; e a alegria de viver vinha com tamanho ardor de sua garganta, que não era fácil para os observadores suportá-la. Mas eles se superavam, se acotovelavam ao redor da jaula e de modo algum queriam sair dali”. Mas ao artista da fome, ao contrário, é só a negatividade da negação que lhe dá o sentimento da liberdade, que é tão ilusória como aquela liberdade que conserva a pantera “ao mastigar”. Também a Bartleby se associa o “Sr. Kotellet”, que aparenta ser um pedaço de carne. Ele elogia exageradamente o local, tentando convencer a Bartleby a comer: “Hope you find it pleasant here, sir; — spacious grounds — cool apartments, sir — hope you’ll stay with us some time — try to make it agreeable. May Mrs. Cutlets and I have the pleasure of your company to dinner, sir, in Mrs. Cutlets’ private room?” As palavras que o advogado dirige ao assombrado Mr. Kotellet, após a morte de Bartleby têm um tom quase irônico: “Eh! — He’s asleep, aint he?” “With kings and counsellors”, murmured I. A narrativa não se volta na direção de uma esperança messiânica. Com a morte de Bartleby, cai precisamente a “última coluna do templo decaído”. Ele sucumbe como um “naufrágio em meio ao Atlântico”. A fórmula de Bartleby “I would prefer not to” afasta-se de qualquer interpretação messiânico-cristológica. Essa “história provinda da Wall Street” não é uma história da “des-criação” [Ent-schopfung], mas uma história do esgotamento [Erschopfung]. Queixa e acusação, juntas, formam a invocação com a qual se encerra a narrativa: “Oh Bartleby!, Oh, humanidade!”
PS: Byung-Chul Han. Sociedade do cansaço. Tr. Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ : Vozes, 2015