Ésotérisme de Shakespeare

Avant-propos et Conclusion

Prefácio

É um fato pouco conhecido, mas facilmente verificável, que o homem, o pensador dos séculos XVI e XVII, preocupava-se principalmente com doutrinas ocultas relacionadas à salvação espiritual. Paralelamente às doutrinas das Igrejas, romana ou reformada, frequentemente até em conjunção com elas, filósofos e teólogos, matemáticos e alquimistas descreviam em uma linguagem muitas vezes alusiva e impenetrável a jornada suposta da alma humana, originária do empíreo e destinada a retornar a ele, geralmente após várias estadias na terra. De Platão a Plotino, do Pseudo-Dionísio a Victorino, ambos cristãos, esses ensinamentos ocultos, fixados pelos escritos herméticos de Alexandria, passaram aos grandes místicos da Idade Média. Mestre Eckhart, Ruysbroeck, o Admirável, Tauler de Estrasburgo recolheram esse legado em seus escritos inspirados. Ele será reencontrado no início do século XVI no Abade Tritêmio de Spanheim e seus discípulos, Paracelso e Cornélio Agrippa. Menos de um século depois, resumindo e esclarecendo a enorme literatura paracelsiana, um grupo de teólogos alemães lançou, sob o nome agora ilustre de Fraternidade Rosa-Cruz, uma doutrina supostamente imaginada em pleno século XV por um mítico epônimo: Christian Rosencreutz [^Tais são as conclusões de um estudo aprofundado da história dos Rosa-Cruz que publico simultaneamente. Esse estudo demonstra, por outro lado, que o cabalismo não era, na época, privilégio de fraternidades clandestinas, as quais só se constituirão, no mais cedo, no final do século XVII.] (literalmente Rosa-Cruz). Estamos em 1614, cerca de três anos após A Tempestade, uma das últimas peças de William Shakespeare.

O autêntico movimento Rosa-Cruz, que na realidade durou apenas quatro ou cinco anos, será o último florescimento dos ensinamentos esotéricos que não serão completamente esquecidos por Descartes, Leibniz, Spinoza e depois Swedenborg*. Separado doravante da magia e da alquimia, que caíram em descrédito, pouco a pouco até mesmo afastado da filosofia ensinada publicamente, o ocultismo não será mais a preocupação do homem culto, mas sim, clandestina ou altiva, de pensadores isolados, charlatões ou algumas lojas maçônicas. E não surpreende que, hoje em dia, os intelectuais, com raras exceções, não apenas ignorem completamente essas doutrinas consideradas obscuras, perigosas ou absurdas, mas se recusem a imaginar uma época em que os círculos literários e, em geral, a sociedade culta encontravam nesses ensinamentos ocultos o principal objeto de sua curiosidade e o tema da maioria das grandes obras literárias.

A Inglaterra elisabetana não ficou à margem dessas correntes filosóficas, muito pelo contrário. As páginas que se seguem lembrarão as polêmicas que opuseram, por volta de 1590, cabalistas e céticos: a maioria dos homens de letras mais universalmente célebres — de Sir Philip Sidney a Edmund Spenser, de Greene e Nashe a Chapman e Marlowe, de Thomas Heywood a Lyly e Shakespeare — participou apaixonadamente desses debates, às vezes com risco de vida. Em obras literárias que hoje passam por inexplicáveis — ou, o que é pior, aceitam interpretações —, esses homens, adotando em linhas gerais ou em detalhes o ensino dos mestres da doutrina secreta, ilustraram com parábolas poéticas os mistérios espirituais nos quais acreditavam ou fingiam acreditar. Essas tomadas de posição na Londres de Elizabeth I não foram menos dramáticas que a querela das confissões: Kyd e Marlowe pagaram com a vida.

Até hoje, nas pesquisas dos historiadores e literatos, essas correntes místicas foram quase completamente ignoradas, sendo um erro considerá-las subterrâneas, tão publicamente se manifestavam então. Uma comparação minuciosa das principais obras elisabetanas — de A Rainha das Fadas a Astrophel e Stella, de Fênix e a Rolinha à Hierarquia dos Anjos, dos Hinos a Cynthia e à Noite até Fausto, Cimbelino e A Tempestade — e da enorme literatura ocultista, desde Tritêmio e Paracelso até Andreae e Michael Maier e, na própria Inglaterra, de John Dee e Reginald Scot a Robert Fludd, convencerá a cada instante do que deve ser doravante o fato marcante da literatura elisabetana e jacobina: ela não está apenas impregnada de alusões e empréstimos diretos, patentes, muitas vezes literais ao que se poderia chamar em resumo a ou as tradições esotéricas, seu jargão, seus mitos e parábolas, suas doutrinas: frequentemente tem como objetivo primordial — senão único — exaltar esses ensinamentos, difundi-los sob uma forma poética às vezes muito transparente, às vezes envolta. Creio que não há período na história das letras que, por mais de sessenta anos, tenha repetido com tanta insistência os mesmos temas, com uma notável identidade de pensamento e até de fórmulas.

Ora, em certas obras de William Shakespeare — e justamente naquelas que se julgava conhecer melhor — encontram-se muitos empréstimos bastante evidentes. Os textos passíveis de imaginação ou os retoques feitos propositalmente pelo poeta em suas fontes literárias são frequentemente, à luz de paralelos precisos, um esforço deliberado, evidente, para transformar uma anedota charmosa mas anódina ou trágico-cômica na expressão figurada de doutrinas que outros exprimiam mais claramente. Não se trata aqui de hipóteses mais ou menos engenhosas, acrescentando mais uma interpretação a todas as já propostas. Shakespeare [^Este livro não levanta a questão da identidade de Shakespeare. Nada em seus desenvolvimentos se baseia em um fato da vida privada do poeta: a obra basta para testemunhar suas convicções filosóficas e religiosas. Estas páginas subsistiriam mesmo se fosse demonstrado (e duvido que se consiga) que o ator William Shakespeare de Stratford não se identifica com o autor dramático. Dito isto, convém salientar que frequentemente se terá ocasião, nas páginas que se seguem, de discutir tal ou qual afirmação de detalhe avançada em várias teses sobre possíveis identificações. Ver-se-á quão frágeis são esses argumentos nos quais os publicistas considerados pretendem fundar sua hipótese.] — qualquer que fosse sua personalidade — não viveu fora do tempo; não pôde ignorar o que se dizia abertamente nos círculos literários e nos meios aristocráticos de Londres. Assim, as coincidências precisas de textos dificilmente podem passar por acaso, quando ocorrem com tanta frequência.

Não hesito em afirmar que essa nova luz sobre a literatura elisabetana e especialmente sobre certas obras de Shakespeare dará a esse segmento do pensamento humano e da obra poética inglesa um sentido singularmente mais próximo da Idade Média e de sua atmosfera mística do que da literatura contemporânea, para a qual os comentaristas atuais tentam atrair Shakespeare e seus amigos. Creio que suas obras sairão engrandecidas [^Prolegômenos, de certa forma, ao presente livro, minha História dos Rosa-Cruz e da Origem da Franco-Maçonaria propõe o primeiro estudo imparcial e completo do movimento filosófico e espiritualista dessa época curiosa, o de suas fontes medievais e antigas puramente místicas e de suas repercussões no mundo das letras.].

Preciso que todas as citações de textos ingleses e alemães são traduções palavra por palavra, sem a menor preocupação de elegância, para que o leitor tenha diante dos olhos o equivalente exato do original.


Conclusão

Não se poderia resumir, para a comodidade, a argumentação deste livro. Desprovida de apriorismo, ela repousa inteiramente sobre justaposições de textos de épocas próximas. Ela revela a existência, nos meios intelectuais de Londres, entre 1580 e 1640, grosso modo, de uma corrente de pensamentos e de um corpo de doutrina aos quais Shakespeare e seus contemporâneos se limitaram a emprestar uma forma literária.

A partir de tradições diversas mas convergentes, o início do século XVI tinha desprendido um ensino esotérico situando-se na confluência do gnosticismo cristão, do hermetismo neoplatônico e da cabala judaica. Esse iluminismo proliferava tantão à sombra, em torno de um dos grandes mestres do misticismo ocultista, tantão publicamente em discussões orais ou impressas; ele foi fixado por uma linguagem alusiva, fórmulas tradicionais, mitos e alegorias recolhendo todo o legado da antiguidade e do próximo-oriente. Mantido por um espírito de polêmica, sobretudo na Alemanha e na Inglaterra, esse movimento eclodiu subitamente em 1614, num profetismo por vezes pretensioso, sob o nome de « Fraternidade dos Rosa-Cruzes ». Esse avatar do iluminismo do século anterior não oferece outra originalidade senão a de nos entregar tanto na Inglaterra como na Alemanha, um arsenal de símbolos, fórmulas e mitos até então mais ou menos ocultos.

Os poetas e dramaturgos ingleses da época elisabetana e jacobina, tomaram uma parte extremamente ativa e apaixonada nas querelas que desencadeavam então entre iluministas e teólogos divergências de doutrina ou de aplicação. A filosofia esotérica não era para eles objeto de curiosidade literária ou intelectual, era um elemento primordial de sua maneira de pensar que engajava o ser inteiro. É por isso que dela fizeram o tema central de número de suas obras cuja alegoria fez errar a crítica. O despojamento metódico da literatura alquímica ou hermética dos dois séculos, e particularmente daquela da pretensa Fraternidade dos Rosa-Cruzes, permitiu-me não apenas isolar um número incalculável de empréstimos diretos feitos pelos escritores aos filósofos iluministas, mas encontrar esquemas inteiros de trechos, cenas ou peças visivelmente enxertados sobre argumentos literários. Esses empréstimos que o público da época identificava facilmente restituem a obras que se acreditava compreender ou que se renunciava a explicar um sentido desconhecido e evidente.

É em certas das obras de Spenser e de William Shakespeare que reencontramos os traços mais consideráveis dessa corrente de pensamento da qual este último compreendeu melhor o valor humano; e pode-se dizer que se era menos que outros assombrado por fórmulas mitológicas abscônditas, inscreveu em todas as suas tragicomédias ou falsas tragédias — O Mercador de Veneza, Cimbeline, O Conto de Inverno, A Tempestade — numa escrita alegórica mas facilmente reconhecível, ao mesmo tempo o essencial da doutrina iluminista e as vias e provas pelas quais o ser humano pode obter a salvação.

Mas esse aspecto messiânico da obra de Shakespeare que restitui de passagem um sentido preciso e técnico a páginas até então obscuras, não resultava apenas de uma vontade deliberada do poeta — cujas convicções íntimas nos importam tão pouco quanto a personalidade —; era o produto de um humanismo que se pode julgar desusado mas que abria uma via maravilhosa para a decifração do homem e de seu segredo.


PS: L'Ésotérisme de Shakespeare, par Paul Arnold. Mercure de France, 1955.