O primeiro modo como a afirmação de Heidegger faz sentido no interior da palavra heideggeriana é o que poderíamos chamar o modo ontológico. É primordial em três sentidos sobrepostos: na medida em que corresponde à primeira época do pensamento de Heidegger, quer ao nível da cronologia estrita, na medida em que faz parte de uma espécie de camada fundadora de todo este pensamento, quer ao nível da ordem interna do desenvolvimento do enunciado heideggeriano, na medida em que é, finalmente, a forma escolhida com mais frequência para apresentar aquilo que o enunciado visa, no nível quase quantitativo da insistência, portanto. Em suma, e para evitar problemas de momento, o sentido do enunciado nesta primeira perspectiva é que a ciência não pensa porque não é ontologia fundamental. Vamos deter-nos apenas um pouco neste nível de significado da frase: o suficiente para compreender que não é nem suficiente nem autônomo. Nas suas várias nuances, este juízo sobre o que a ciência não é ou não faz é completamente controlado por uma certa ideia “positiva” do pensamento, por uma certa maneira de representar o seu “gesto” mais próprio. É por isso melhor, pensamos nós, olhar as coisas por esse outro lado, e é isso que faremos na segunda seção deste estudo. Mas consideremos primeiro este nível “ontológico”, para experimentarmos, o mais rapidamente possível, mas com autenticidade, os seus limites.
Encontramos em Heidegger uma certa “teoria” do lugar da ciência no caminho para a compreensão do ser, que a situa “depois” da pré-compreensão “utensilitária” (onde o ser do ente é já de certo modo “compreendido”, sem no entanto ser de modo algum tematizado, uma vez que o Dasein apenas se move a partir de um movimento que é essa pré-compreensão), mas “abaixo”, “antes” da “meditação temática do ser” propriamente dita. Um texto em que este ponto de vista é muito claramente exposto é o § 2 da Interpretação Fenomenológica da Crítica da Razão Pura de Kant [GA25:38-56]. Esta determinação da essência da ciência, que provoca a divisão entre ciência e filosofia, pode ser analisada de acordo com as duas teses seguintes:
o discurso científico é local em relação ao discurso abrangente da filosofia; os “conceitos fundamentais” elaborados pelo discurso da ciência são elaborados apenas tendo em vista o ente e o “resultado” efetivo do lado do ente, enquanto o discurso filosófico pensa o significado de qualquer conceito “regional” em relação a um pensamento da regionalidade enquanto tal, que pressupõe a meditação do ser enquanto tal. [^Os métodos científicos foram desenvolvidos precisamente com o objetivo de examinar o ente; eles não têm qualquer missão de explorar o ser desse ser. Porque, para o fazer, é necessário que o ser seja um ser. Porque, para o fazer, é necessário objetivação não do ente, isto é, a sua natureza como um todo, mas a constituição do ser da natureza ou do ente...”. (Heidegger 1928, GA25:53)]. É neste sentido que Heidegger pode dizer que o discurso científico nunca saberá por si próprio o que pensa efetivamente nos seus conceitos, mesmo que neles se realize a elaboração explícita da “constituição do ser” de uma região do ente [^“Torna-se subitamente evidente a falta de um método seguro para questionar o que se pretende nos conceitos fundamentais enquanto tais, e do fundamento para justificar, isto é, para fundar realmente os próprios conceitos fundamentais...”. Heidegger 1928, GA25:52].
o enunciado filosófico é metacientífico, tal como o enunciado científico é meta-utensilitário. Se a “viragem para a ciência” tematiza o que está implícito no ser-no-mundo utensilitário, a “viragem para a filosofia” tematiza a elaboração do ser do ente que está implícito no ser-no-mundo científico: tematiza-a como albergando um visada de Ser em sentido estrito (no sentido da diferença ontológica) [^"Assim, a refundação de uma ciência não lhe é anexada a partir do exterior, é antes a elaboração da compreensão do ser pré-ontológico já nela necessariamente implicada numa exploração e numa ciência do ser, em ontologia.” (Heidegger 1928, GA25:53)].
Até aqui, o fato de a ciência não ser considerada como pensamento está, portanto, “simplesmente” ligado a uma determinação implícita do pensamento como pensamento do Ser, e ao pressuposto correlativo da impotência da ciência para delimitar essências em profundidade: qualquer delimitação de essência ao nível mais profundo tem de ser uma delimitação no horizonte aberto do Ser, e não no fechamento de uma regionalidade já tomada como assegurada, admitida na sua implicitude pré-filosófica.
No pensamento de Heidegger, esta impotência manifesta-se na incapacidade de assumir um questionamento reflexivo, sobre a essência da sua própria operação, da sua própria posição, da sua própria dimensão. Muitas das frases [[Citaremos duas destas frases: