Excertos do estudo de Maria Helena Varela, "O Heterologo em língua portuguesa"

Entre o racionalismo científico, o paradigma positivista ao qual mais ou menos se manteve fiel em O Brasil mental, e o irracionalismo dos poetas e filósofos românticos do século XIX, a herança heterodoxa dos pensadores gnósticos parece-nos de destacar nesta opus magnum. De fato, um saber hermético de inspiração gnóstica parece ter penetrado o corpus científico dos séculos XIX e XX, como afirma Gilbert Durand [^Durand, Gilbert. Science de l’homme et tradition. Paris, Berg, 1979.], manifestando-se até nos sistemas mais positivistas. Para este pensamento hermético e esotérico, qualquer interpretação filosófica ou científica dos símbolos, apenas desloca o mistério, sem jamais o decifrar, adquirindo todo o conhecimento um sentido meta-racional e intuitivo, como pode verificar-se em Sampaio Bruno.

Neste esboço de teodiceia, José Pereira Sampaio parece-nos demasiado próximo das fontes gnósticas [^Durante o império grego de Alexandre e seus sucessores, os ideais e práticas religiosas da índia e da Pérsia (Zoroastro) tinham-se expandido para o Ocidente; misturando-se com elementos gregos e minóicos, formaram um sincretismo religioso através do mundo mediterrâneo, cujo resultado mais notável foi o conjunto de doutrinas e cultos conhecidos por Gnosticismo. A este todo sincrético misturam-se as influências do judaísmo arcaico e do cristianismo primitivo, podendo falar-se de relações de filiação entre gnose e Kabalah. Na maior parte das vezes, só se conhecem as doutrinas gnósticas através dos textos dos doutores da Igreja que as denunciavam como heresias, tais como Santo Irineu e Orígenes, entre outros. A gnose constitui uma das formas mais antigas de racionalidade mítica e mística, exercendo influência em certos autores românticos do século XIX. Em Sampaio Bruno, o acesso às fontes gnósticas ter-se-ia eventualmente processado através do judaísmo e da Kabalah, domínios esotéricos a que o autor teve acesso, mais do que através dos textos originais ou dos padres da Igreja.], sobretudo no que se refere à problemática da cisão misteriosa, do tempo e do mal. Para as correntes gnósticas dos primeiros séculos do cristianismo, Deus é um ser obscuro e incognoscível, contendo o germe do mal e do erro.

Um seu executor subordinado, o Demiurgo teria criado este mundo errôneo e instável no qual uma fração da própria divindade caiu, precipitando-se no exílio. Num mundo criado por engano, num cosmos abortado, os principais efeitos serão o mal e o tempo, sendo este a imitação deformada da Eternidade. Daí a rejeição do tempo e da história no gnosticismo, tendo-se esforçado a patrística por recuperá-la através de uma filosofia racional e providencialista, inspirada no messianismo judaico e no racionalismo dos gregos.

Para o gnosticismo o mundo é um exílio, e a existência um mal. Precipitado no mundo, agrilhoado a um corpo, o homem tem necessidade de se libertar, porque, apesar de tudo, sente-se participante da divindade, só provisoriamente no exílio, como consequência da queda. Se conseguir retornar a Deus, o homem não só se reunirá com o seu princípio e a sua origem, como também contribuirá para regenerar essa mesma origem, para a libertar do erro original. Embora prisioneiro de um mundo e de um tempo decaídos, o humano sabe-se investido de um poder sobre-humano. Por isso, tal como em Sampaio Bruno, para os gnósticos a divindade só poderá superar a queda inicial, graças à cooperação do humano, transformando-se o homem gnóstico num Übermensch. O que caracteriza o poder deste super-homem é que só alcança a salvação através do conhecimento do mistério do mundo (gnose). Ao contrário dos que estão presos à hyle (matéria), os hylicos, sem esperanças de salvação, aqueles que pertencem ao espírito, pneumatikoi, aspiram à verdade e à redenção cósmica. Por isso, e ao invés do cristianismo, o gnosticismo não é uma religião de escravos, mas de senhores, de profetas eleitos que visam à reintegração final no todo. Só o super-homem gnóstico compreende que o mal não é um erro humano, mas sim o efeito da cisão primordial, e que a salvação só se efetiva pelo conhecimento (gnose), a religião da razão de que fala o pensador portuense em Os cavaleiros do amor [^O tema básico do Gnosticismo era a fuga do mundo material — que se considerava mau, criação de um deus inferior, o demiurgo — para outra esfera onde seria possível usufruir a vida pura do espírito, esfera considerada como a centelha do divino no homem. A forma de ascender a este reino espiritual, mais elevado, constituía a preocupação dos vários cultos gnósticos, acreditando-se que era atingida pelo conhecimento (gnose). Maniqueístas, os gnósticos acreditavam que a salvação se destinava ao espírito do homem, não ao corpo, à matéria. Só libertando-se desta, princípio do mal, o homem pode descobrir a vida espiritual e ter acesso à salvação pelo conhecimento. Em relação aos hylicos, seres ligados à matéria (hyle), sem esperança de salvação, os pneumáticos (pneumatikoi) são os únicos que poderão aspirar à verdade, logo à redenção através do conhecimento dos mistérios do mundo. Se o mundo é o reino do mal, o gnóstico odeia a sua natureza material, despreza o corpo, ascendendo ao espiritual através do conhecimento do próprio mal, da negatividade, única forma de regeneração cósmica.].

É difícil evitar a tentação de procurar uma herança gnóstica no pensamento de José Pereira de Sampaio, como em grande parte dos autores românticos do século XIX. Aliás, a origem cátara, logo, gnóstica do amor no Ocidente — da poesia cortês ao romantismo — entendido como renúncia, relação puramente espiritual, é por demais conhecida; sendo gnósticos os princípios do idealismo romântico que fazem do tempo e da história, elementos reintegradores do homem no Espírito absoluto. Mas é sobretudo no espírito iniciático e saber esotérico que atravessa o pensamento do século XIX em geral, e o heterologos em Portugal em particular, que a herança gnóstica mais se manifesta. Em A Ideia de Deus, Sampaio Bruno chega a referir-se especificamente ao gnosticismo, na tentativa de explicitar a reintegração do homem no Espírito Puro:

Para o gnosticismo, relembra Amorim Viana que “o Universo decompõe-se em uma série de Eons ou entes distintos, criados por via de emanações, das regiões celestes para as regiões terrestres. Nessa escala de seres, Cristo ocupa um lugar superior ao homem, e está constantemente a elevar Sofia ou Acansot. representante da alma humana, do todo terrestre, onde se submergiu, até ao Pleroma ou abismo das perfeições. O Sumo Bem ou Deus reside nesse Pleroma, no Bythos, no Eon primitivo. O derradeiro Eon é a matéria eterna como Deus, mas essencialmente má”. Nesta nova concepção, a matéria não é eterna como Deus e as emanações divinas não vão prevaricando à medida que se afastam da origem. Pelo contrário, vão intensificando, maiores sendo. No átomo primo, a revelação divina é a direção do movimento, o qual veio logo do anelo do regresso ao espírito puro. No animal, a revelação é instinto. No homem, a revelação é razão. E, do átomo ao animal e do animal ao homem, a matéria desmaterializou-se; espiritualizou-se; aproximou-se do ponto de chegada; libertou-se; tendeu a voltar ao estado puro, anterior à diferenciação inicial do homogêneo infinito. Assim, a relatividade convergiu, novamente, para o absoluto.[^Sampaio Bruno. A Ideia de Deus, p. 346-347.]

Do átomo ao animal, do animal ao homem, a matéria des-materializa-se, ou melhor, espiritualiza-se. Por isso, cabe ao homem a suprema tarefa de libertação num processo cósmico, soteriológico. Ser para o mal e para a morte, é também homem de desejo, o pastor do ser, parafraseando Heidegger; aquele que traz no olhar visível a sombra invisível do absoluto, a crença e a esperança saudosa nesse paraíso perdido, que dormita nos arquétipos mitogenéticos da memória.

Se A Ideia de Deus pretende refutar o pensador solar e ortodoxo que, em certa medida, foi Amorim Viana, para o qual Deus é permanente e imutável, est nonfit [^Op. cit., p. 360.], José Pereira Sampaio reafirmará aí as metamorfoses do tempo, a que chamamos devir, os caminhos múltiplos das heterodoxias. “Se Deus existiu e Deus existe, Deus existirá! Redimindo o diferenciado na consumação dos séculos, como o foi antes dos séculos: — a homogeneidade do absoluto será”[^Op. cit., p. 361.]. E este é o mistério heterodoxo do pensamento contemporâneo português. A fusão do uno e do múltiplo, do homogêneo e do heterogêneo constitui o aspecto essencial das heterodoxias, simbolizadas no mito da serpente, expressas na dialética triádica do tempo em Sampaio Bruno. Caberá sempre ao homem, poeta ou profeta, cavaleiro do amor ou da fé, essa tarefa de vislumbrar no tempo a dinâmica que lhe permitirá pensar, embora não compreender o absoluto e inominável a que não cessa de aspirar, perante a sua condição decaída, o seu exílio existencial. O tempo é esse grande escultor cósmico, tempo de metamorfose, rio heraclitiano, devir-progresso que, ao atravessar uma história messiânica, tomou tantas vezes possível o impossível, transcendendo-se no milagroso e no mito, no meta-lógico e no paradoxal.