Shakespeare dedicou Vênus e Adônis ao senhor Henry Wriothesley, conde de Southampton. Era, disse ele, o primogênito de sua imaginação. O pequeno livro saiu das prensas do stratfordiano Richard Field, a 18 de abril de 1593, algumas semanas antes do assassinato de Christopher Marlowe que acabara de completar os dois primeiros cantos de seu Hero e Leandro de tema filosófico análogo.
Foi um sucesso de livraria e quase um sucesso de escândalo. O ardente apelo de Vênus exaltando a lubricidade chocou os espíritos puritanos. Davies de Hereford ficou « ofuscado por essa ciência do amor » e ainda mais pelo interesse que as damas tinham nessa leitura: « Nossas damas mais castas, escreve ele, leem esses versos em segredo e, mesmo quando não fazem outro mal, perdem-se em especulações voluptuosas ». Daí a dizer que Vênus e Adônis não é senão um « apelo para a voluptuosidade sexual », há apenas um passo que tal comentarista moderno transpõe alegremente. Outros, mais numerosos, identificam Adônis a Southampton, citando em apoio esses versos do Soneto LIII: « Se se descreve Adônis, o retrato é pobremente imitado de ti » (Describe Adonis, and the counterfeit — is poorly imitated after you).
Southampton — Harry — tinha então dezenove anos. Burleigh, primeiro ministro da rainha Elizabeth, encarregado da vigilância do jovem conde após a morte de seu pai, partidário de Maria Stuart, esforçou-se por casá-lo com sua neta, filha do conde de Oxford, Elisabeth de Vere, de quem ele assegurava a tutela. Lady Southampton mãe de Harry, apoiou esse projeto. Mas Harry, por razões perfeitamente desconhecidas (as suposições correm soltas, da parte sobretudo dos defensores da sodomia de Harry e de Shakespeare), Harry resistiu, adiou o casamento de ano em ano e deve ter finalmente pago uma indenização por « ruptura de contrato »; Elisabeth Vere casou-se, no início de 1595, com William Stanley a quem amava havia muito tempo e que, após a morte prematura de seu irmão, se tornara conde de Derby, um dos partidos mais invejáveis da Inglaterra. Admite-se geralmente que os sonetos shakespearianos que apelam para o casamento de seu protetor refletem a opinião de lady Southampton e incitam o amigo a ceder às instâncias de sua mãe.
Tudo isso — que pouco nos interessa — parece lógico, e essas poucas incidências bastam aos comentadores para explicar o nascimento dessa admirável série de sonetos. Mas releiamo-los.
Ora, em Vênus e Adônis, a deusa do amor, manifestamente aborrecida pelo poeta como pelo próprio Adônis, repete traço por traço e quase palavra por palavra os mesmos argumentos. Procurando vencer a pudicícia e a castidade do adolescente, Vênus exclama:
É manifesto que os dois apelos se assemelham, partem de uma mesma filosofia (ou de um mesmo sofisma), tendem aos mesmos fins por um mesmo arsenal de metáforas e ideias. E posto que é claro e palpável que o poema inteiro de Vênus e Adônis passa condenação sobre a deusa, acusa sua lubricidade, exalta a pureza de Adônis, pode-se perguntar em que medida Shakespeare foi sincero ao compor os sonetos, retomando traço por traço os argumentos da corrupção a fim de adjurar o amigo, se é que se deve buscar alguma realidade concreta por trás do poema [[Excluo a ideia de uma relação suspeita entre o poeta e o amigo, relação que poderia, em última instância, explicar uma atitude hipócrita de Shakespeare. O soneto XX é suficiente para dissipar de uma vez por todas as incertezas que a escola de Oscar Wilde, interpretando mal várias passagens e peças, quis lançar sobre o comportamento do poeta:
Neste último verso, “amor” parece designar sucessivamente e não cumulativamente o afeto espiritual e a paixão física. O contexto resolve a questão. Sobre as diversas interpretações dos Sonetos propostas a esse respeito, consulte, por último, Martin Maurice (William Shakespeare).]].
Adônis, discípulo da casta Diana caçadora, é « desdenhoso do prazer » (unapt to toy) e « gelado quanto ao desejo » (frosty in desire); « não tem apetite » para o prazer (leaden appetite). Casto até o heroísmo, será vencido « não pela voluptuosidade (not in lust) mas pela força », a violência, a armadilha da deusa desdenhada. Conformando suas metáforas à imagética ocultista, os elisabetanos opunham à castidade « gelada », o « calor » e « a vermelhidão » do desejo. É por isso que todo calor, mesmo aquele do sol, repugna a Adônis, « o sol o queima no rosto », e se é « vermelho », é de « pudor » (shame). Vênus por outro lado, é « vermelha e quente como o carvão de um fogo ardente ». « Seu sangue ferve » e o calor do sol lhe parece « apenas tépido ». Tais são os efeitos dessa « luxúria » (lust) que lhe inspira gestos loucos e uma « linguagem luxuriosa » (lustful). Tal é a oposição Diana-Vênus sobre a qual repousa a tragédia de Adônis e a filosofia do poema inteiro: deusa da castidade contra deusa da carne.
Comentadores modernos que amam os sistemas e as simetrias primárias procuraram opor Vênus e Adônis ao Rapto de Lucrécia, publicado um ano mais tarde e dedicado ao mesmo Southampton. Ao « apelo para a voluptuosidade sexual » faria par um « poema em honra da castidade conjugal ».
Nada mais inexato. A situação é idêntica nos dois poemas: à castidade faz face a figura gorgônica, a voluptuosidade condenável. Lucrécia « a casta » tem « a brancura da virtude » (virtue’s white); seu queixo é branco como o pano de sua cama, e se uma vermelhidão sobe a seu rosto, é a do pudor, aquela que « a Virtude reclama à Beleza », como ocorre com Adônis. Tarquínio ao contrário, como Vênus, é possuído pela « luxúria » (lust) e o « desejo carmesim ». É dominado pela « ardor (heat) louca e falsa », « a vontade ardente ». E da mesma forma que Vênus queima do « desejo » que « vê melhor a noite », da mesma forma Tarquínio « encontra seu cúmplice na noite onde vigiam luxúria e assassinato ».
O paralelo vai mais longe ainda. A situação respectiva dos casais é a mesma: um dos parceiros sente pelo outro um desejo ilícito — seja consumação antes do casamento (Vênus), seja desejo adúltero (Tarquínio). É em nome da única castidade que uma e outra vítimas recusam o prazer e morrem. Mas tomemos bem cuidado! Não se trata, no pensamento de Shakespeare, nem de um vulgar conformismo de moral burguesa, nem de um esoterismo teórico à Chapman. Adônis, responde assim a Vênus:
E ainda:
Não se poderia ser mais claro: Adônis não recusa a união dos corpos; recusa a união apressada, prematura, o efeito da voluptuosidade, do fogo ilícito; recusa a ardor da luxúria, o impulso da natureza que Vênus confunde com o amor. Como Biron, sabe que cada coisa vem em sua estação e que o amor deve ser o fruto da razão, a união dos corpos deve ser amadurecida, refletida, voluntária, como aquela que a Princesa propõe ao rei de Navarra em Trabalhos de Amor Perdidos. E antes de se jogar na armadilha da voluptuosidade que « não quer conhecer », Adônis buscará « uma vida na morte onde se ri e chora e isso quase ao mesmo tempo».
E da mesma forma a castidade de Lucrécia não é uma castidade virginal, posto que é a esposa, segundo a lei, de Colatino a quem não recusou seu corpo. Da mesma forma que Desdêmona reclamará altamente « os direitos sagrados (ritos) (do matrimônio) pelos quais ela ama » Otelo, da mesma forma Lucrécia emprestou seu corpo ao esposo.
Da continência, eis o que reclama Adônis; necessidade da continência, submissão do corpo ao espírito, eis o que exalta. E Lucrécia, por seu exemplo, confirma que só é condenável a voluptuosidade em si, o prazer da carne que não seja proposto pelo dever. Encontramos na Tempestade, a « teoria » desse ensino aplicado a Fernando e Miranda « que fizeram voto de não provar os direitos do leito — antes que a tocha de Hímen seja acesa ». Shakespeare-Próspero nos disse então longamente por que não se deve consumar « antes que as cerimônias santas possam ser cumpridas com o rito pleno e sagrado » e por que « impôs provas » ao amor de Fernando, por que lhe reclama até a hora do casamento a mais absoluta « temperança » que « abata a ardor de seu sangue ».
Tal é a oposição que Shakespeare entende marcar entre os parceiros. Enquanto Tarquínio busca um « prazer terrestre » (earth’s delight), uma « pressa não santificada » (unhallow’d), Lucrécia só aprova « o voto sagrado do matrimônio » (holy wedlock vow). É que no pensamento do poeta a voluptuosidade é um mal, um encantamento de alguma potência maligna. Tarquínio é « encantado pelo feitiço ignóbil da luxúria », dominado por « o brutal desejo demente » (brain-sick), por « a luxúria assassina » (slaughter’d lust). Vênus fez de Marte « seu cativo e seu escravo », tornou-o estúpido, obnubilado (foil); ela revira os cabelos de Adônis com uma « demência cega » (blind fold fury). Vimos em Cimbeline e na Tempestade que aos olhos de Shakespeare, demência ou fúria na paixão equivale a possessão demoníaca. E sabemos por Lyly e Chapman que a Górgona e Tellus mantêm o homem sob o feitiço das paixões e que não há outra salvação senão opor a razão e a contenção ao arrastamento da carne. É isso certamente, um ponto comum entre o cristianismo e as religiões de mistérios; mas é a essência mesma, o ponto de partida da tradição esotérica recordada acima.
Tal é o sentido profundo da estupenda « psicologia do vício » que contém O Rapto de Lucrécia:
E mais adiante:
O amor-paixão é um mal coeterno à humanidade por um decreto dos deuses, um decreto de Vênus que, à morte de Adônis, exclama:
Assim, reencontramos o Amor em seu papel de corruptor, de agente do Mal, no qual o representavam constantemente os contemporâneos de Shakespeare. E como em Chapman e em Lyly, é Cynthia, a Lua que se opõe à « manifestação », ao mundo das formas:
Cynthia, de vergonha, vela seu luzeiro prateado até que a Natureza não tenha sido condenada por traição, por ter roubado ao céu as formas divinas onde te moldou, a despeito do céu para fazer vergonha ao astro do dia e ao astro da noite.
E é por isso que ela (Cynthia) subornou as Parcas a fim de contrariar a obra da Natureza e misturar à beleza as enfermidades e à perfeição pura a impura fealdade,
Segue uma longa lista de misérias e de doenças das quais uma só bastaria para « derrubar a beleza em menos de um minuto » [[Da mesma forma Lucrécia avistando, em seu infortúnio, as contradições do universo criado se pergunta:
Depois, procurando a causa de tantos males, ela avista sobre uma pintura da guerra de Troia, o rosto de « a meretriz que desencadeou essa guerra » e « Páris insensato » cuja « ardor de luxúria » (heat of lust) esteve na origem de tudo. Quando muitos anos mais tarde Shakespeare escrever Troilo e Créssida, atribuirá a queda de Troia à única infidelidade conjugal, à voluptuosidade de uma mulher.]].
Assim, como para Chapman, Cynthia a Lua é aqui a implacável inimiga de Vênus e de seu mundo das formas « de repente destruído, dissolvido, aniquilado ». Certamente, no longo poema os desenvolvimentos sobre Cynthia tomam muito pouco lugar e aparecem como um tema literário episódico, tradicional, antes que como uma ideia-força que o poeta teria vontade de pôr em luz, à maneira de um Chapman. Não importa. Cynthia aparece bem no lugar esperado, no papel que lhe atribuem, na época, os ocultistas.
Há em Vênus e Adônis uma outra alusão mitológica que se situa na mesma perspectiva filosófica.
A rainha doente de amor estava em suor, pois onde estavam deitados a sombra os tinha deixado, e Titã, fatigado no calor do meio-dia, com olhos ardentes os considerava ardentemente (holly), desejando que Adônis tomasse as rédeas de sua atrelagem, para que como ele pudesse se estender ao lado de Vênus.
Hesíodo, que se praticava na Sereia, nos ensina que os Titãs eram os pais dos deuses e dos homens, do sol, da lua e da terra. É deles que são saídas todas as raças, toda a criação, por outras palavras toda fragmentação da unidade primitiva. Um dos mitos mais essenciais dos Mistérios eleusinos mantinha os mistas do crime dos Titãs atraindo para baixo Dionísio e o desmembrando: símbolo do nascimento do Múltiplo, símbolo da Criação, da Gênese. A « vida titânica » equivalia à vida formal destinada a desaparecer para reformar a unidade primitiva, tal como Dionísio ao final do mito reencontra sua integridade. Os Titãs são por essência os progenitores.
E é precisamente nesse papel que Shakespeare nos representa aqui Titã: ardente, lubrico, queimando por se acasalar com a deusa do Desejo, hostil a Adônis, à castidade. Nada obrigava o poeta a introduzir esse episódio sem relação com seu tema aparente. Não é verossímil que o tenha feito sem premeditação, sem vontade deliberada de pôr o acento no símbolo platônico do Um e do Múltiplo que recordava há pouco a própria Vênus predizendo a danação da terra-Natureza « por ter roubado ao céu as formas divinas onde moldou » Adônis.
Não é mais verossímil que Shakespeare, que deu ao mito de Adônis transmitido pelas Metamorfoses de Ovídio o desenvolvimento mais completo, tenha ignorado o último episódio. Sabe-se que Adônis morto inspirou amor a Prosérpina rainha dos infernos e que por causa disso ela recusou devolvê-lo à terra dos homens. Num desses julgamentos de Salomão de que abunda a mitologia grega, os deuses decidiram que Adônis partilharia seu tempo entre Vênus e Prosérpina. Esotericamente essa fábula era o equivalente, no plano humano, do mito de Dionísio dilacerado pelos Titãs e reencontrando periodicamente sua integridade: símbolos dos ciclos da alma humana encarnada, morta pelas paixões depois reencontrando sua integridade primitiva ao regressar ao Empíreo, para recomeçar perpetuamente a mesma roda.
PS: ARNOLD, Paul. Ésotérisme de Shakespeare. Paris: Mercure de France, 1955.