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Horto do Esposo I

quinta-feira 26 de junho de 2025

Horto do Esposo   — MARIO MARTINS

Antes de mais nada  , uma pequena mas necessária divagação. Temos, em filosofia  , o «mal   metafísico», a negação   de perfeições indevidas a tal ou tal ser  . Um   cavalo não tem a beleza   alada da borboleta nem a inteligência do homem  . Este não-ter constitui um mal metafísico. Por sua vez, a borboleta não possui a força do cavalo, nem a sua capacidade de viver longos anos. Enfim, o homem não tem a inteligência perfeita dos anjos  .

Neste sentido  , o mal metafísico é inerente a tudo   o que é limitado e a angústia que daí pode resultar revela a tendência para o Absoluto  . Uma coisa deixa de ser   boa no ponto em que termina a sua bondade. E sofremos, porque gostaríamos que ela não conhecesse limites de espécie alguma (o que só é próprio de Deus  ).

Sendo a existência um bem  , o para-além-dos-limites dessa existência, embora conatural a todas as criaturas, constitui um mal metafísico e verifica-se, de sobra, em tudo o que depende do tempo   e do espaço. Chamemos-lhe, por analogia  , «inexistência metafísica  ».

Pois bem, o Horto do Esposo sente-se dominado por esta ideia da «inexistência metafísica», estreitamente vinculada à busca   do Absoluto. A atenção desvia-se do que há de positivo, nas coisas e na existência temporal, para o que nelas falta pela miséria premente da sua temporalidade.

Contudo, este desvio da atenção não constitui fim   em si mesmo  , mas sim meio. Trata-se duma atitude anímica e dum processo psicológico que obrigam o coração do homem a nunca descansar na beleza das coisas limitadas e a procurar o que não finda.

Tal atitude leva-nos a sentir o mundo   e a vida   como sombra que passa ou realidade   desprezável, tão pequeno lhe parece o seu conteúdo positivo.

Como se desenrola a dialéctica desse processo psicológico, que reduz a sombras tudo o que é mundanal? Por meio da comparação entre o muito pequeno e o imensamente grande, pelo sentimento   da morte  , que domina o tempo, e pela vivência das mudanças a que tudo está sujeito, no mundo. Para uma coisa mudar, algo nela tem de morrer. Para vir a doçura da Primavera, acabam as neves invernais. O fruto   nasce da flor moribunda. E no homem, fenece a juventude, ao chegar a beleza da maturidade.

Surge um elemento positivo. Porém, desaparece outro igualmente positivo. E é no desaparecer que nos fixamos.

Desta maneira, a vida causa  -nos a impressão dum morrer sucessivo, dum desaparecer ininterrupto e rápido, pois a mudança   é também rápida, para um espectador   que vai decompondo microscopicamente a mudança e o tempo.

E com certa razão, porque, rigorosamente falando, a vida temporal não é exactamente igual em dois   momentos sucessivos e isto redu-la a uma aparição  -desaparição de quase-sombras efêmeras, a ser e não ser.

Em nós, o tempo apresenta-se como inseparável do movimento e este implica a morte de alguma coisa, ou de algum estado. Concebemos o tempo psicológico à maneira duma só dimensão linear, realizada pela memória   do passado, pela efemeridade do presente (a fazer  -se e a desfazer-se) e pela antevisão do futuro. Das duas extremidades de qualquer extensão temporal, o ponto de partida afasta-se cada vez mais, na memória, e o ponto de chegada (a morte, o deixar-de-ser) aproxima-se também cada vez mais.

Entre as duas extremidades vazias, o presente reduz-se quase a uma abstração  , como o ponto geométrico. O passado é o ter-ido-morrendo; o futuro é o estar-chegando-para-a morte; e o presente, de tão grande densidade subjectiva, é o estar-morrendo a cada instante.

Assim, a vida, como o tempo, devora-se a si mesma. Um momento expulsa o outro   e só o espírito imortal fica subjacente ao rio das mudanças, embora perturbado por elas. O próprio corpo   não é hoje como foi ontem. Envelheceu, foi morrendo — até que um dia morrerá de todo.

E este estar-morrendo apresenta-se sob o aspecto   de negação, a abranger quase todo o campo da consciência  , transformando a vida em longa agonia.

Por conseguinte, ser homem temporal é ser-para-a-morte e ter consciência desse temporalismo. E as mudanças e desaparecimento das coisas, em si ou em relação a nós, vão matando o homem circunstancialmente, naquilo que ele ama e possui neste mundo.

Neste caso, o homem (ou melhor, o seu espírito) situa-se no deslizar permanente do que é temporal, no suportar a morte. Sujeito à mudança, tudo o que existe no tempo (afora o espírito) é como se não existisse tempo nenhum — tal a conclusão a que chega a nossa sensibilidade.

O sentimento da morte, reduzindo a existência temporal a um desfarelamento ininterrupto, gera, em nós, uma angústia maior que a dos simples animais. Estes absorvem-se no presente, vivem com plenitude o instante que passa e a morte não ensombra, geralmente, a sua maneira íntima de sentir a vida. O homem, porém, oscila entre o prazer animal de gozar o instante efêmero e a tristeza   reflexiva de o ver morrer.


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