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Meyrink (Evola) – Doutrina do Despertar
sábado 24 de maio de 2025
GUSTAV MEYRINK (1868-1932)
No centro [de sua obra] está a doutrina do Despertar , com a oposição entre o estado normal da existência humana e o dos seres que alcançaram uma forma superior de existência, chamados também de "Viventes" no sentido mais elevado do termo, pois se trata de "ser vivo aqui e além", ou seja, imortal. Se a doutrina do anâtmâ foi própria ao budismo — negação da presença de um verdadeiro Eu no homem comum —, essa opinião é também a de Meyrink. Um personagem de A Noite de Walpurgis diz: "Você acredita realmente que todas essas pessoas que se veem caminhando pelas ruas possuem um Eu? Elas não possuem absolutamente nada . Antes, são possuídas a cada instante por um espectro que nelas desempenha o papel do Eu." Alhures, Meyrink fala de "sóis apagados", de existências fantasmagóricas. "O homem não está convencido de nada tão fortemente quanto de estar desperto. Na realidade , está preso numa rede de sono e sonho que ele mesmo teceu. Aqueles que nela se encontram atravessam a vida como um rebanho que se dirige ao matadouro." Só pode se desligar desse rebanho aquele que reencontrou essa "chave do poder sobre a natureza inferior, enferrujada desde o dilúvio, que se chama: estar desperto. Estar desperto é tudo ." "Lê as escrituras sagradas de todos os povos da terra; através de cada uma delas passa o fio vermelho da doutrina do Despertar. É a escada celestial de Jacó lutando contra o anjo do Senhor toda a ’noite’ — até o aparecer do ’dia’, quando finalmente obtém a vitória. De fato, só é imortal o homem desperto. Os astros e os deuses declinam, só ele permanece, e pode realizar tudo o que deseja. Não. Não há nenhum Deus acima dele."
Sobre o caminho que leva ao Despertar, Meyrink fala do "domínio mágico do pensamento", que nada tem a ver com os habituais exercícios estereotipados de "concentração mental". "A luta pela imortalidade é uma batalha para dominar os sonhos e os fantasmas que elegeram domicílio no fundo de nós, nosso Eu aguardando ser coroado equivalente à espera do Messias." Num texto integrado em O Rosto Verde, são descritas certas técnicas destinadas a provocar o Despertar, técnicas que em parte lembram o ioga: trata-se de imobilizar primeiro o corpo , para depois se dissociar dele, atravessar e ultrapassar todo um mundo de aparições e fantasmas. Alhures, também se faz alusão à prova que consiste em conservar a consciência lúcida, apesar de uma mudança de estado provocada por fumos exóticos.
Por outro lado, Meyrink afirma que se deve exigir tudo do Eu, a partir do momento em que se descobriu sua dimensão transcendente (em termos hindus, o Eu tornando-se o Atmã, confundindo-se com ele). Então se poderá dominar as ilusões, os miragens, se transporão os limites das religiões — do mundo daqueles que "criam imagens para adorá-las, em vez de se transformarem nessas mesmas imagens" — e também os de certa magia e teurgia . Essa revelação, após experiências trágicas, atormentadas, impõe-se ao personagem principal de O Anjo da Janela do Ocidente, que antes percorrera a via evocatória da magia cerimonial. Esse ponto de vista pouco difere do do esoterismo indo-tibetano: toda aparição não passa de uma projeção enganadora das forças profundas de nosso próprio ser.
Parece, contudo, que Meyrink considera também que uma espécie de predestinação ou vocação (no sentido de chamado) pode encaminhar para o Despertar. Ele retoma, por exemplo, as lendas em que se fala de seres que nunca conheceram a morte — Elias, João o Evangelista gnóstico, o Judeu Errante ou o cabalista Khidr o Verde, ao qual se poderia acrescentar o misterioso Al-Khidr islâmico — que se manifestam a "aqueles que a serpente mordeu". Ou então deseja guiar os seres para uma configuração "fatal" de nossa existência. Em geral, diz-se que "quando renunciamos a correr como loucos atrás de nossas quimeras, a romper cegamente o fio do destino , os eventos compõem uma trama maravilhosa." Todavia, Meyrink alude a um súbito abalo interior (que de certa maneira evoca o Satori do Zen) ou a uma aceleração repentina dos ritmos — "como um cavalo que, até então, teria marchado a passo e que, de repente, se lançasse a galope." Os eventos podem então assumir um aspecto trágico, que pode ser o de uma Noite de Walpurgis: potências se libertam, tomam posse do ser, o transportam. Aliás, o tema da obsessão volta frequentemente nos romances de Meyrink: personagens nos quais se reencarna uma força que às vezes é a que governou um de seus ancestrais. Noutros casos, pareceria tratar-se de uma espécie de atitude "sacrificial", que consiste em permitir que se realizem os efeitos de causas que há muito se reforçavam sem intervir. Assim, em O Golem, Laponder, que cometeu um estupro e um assassinato, recusa-se a fugir do castigo que o espera. Ele diz: "O homem é como um tubo de vidro no qual deslizam bolas de cores variadas. Na vida da maioria dos seres, só há uma bola. Se é vermelha, diz-se que o homem é ’mau’; se é amarela, diz-se que é ’bom ’. Às vezes, as bolas se alternam. Nós, que fomos ’mordidos pela serpente’, vivemos no curso de nossa existência o que de costume acontece a toda uma linhagem de ancestrais no decorrer de um longo período; as bolas multicores percorrem o tubo numa corrida louca, uma após outra, até que nos tornemos profetas, imagens do divino . O Despertar sobrevém após uma espécie de pesadelo, na linha tão tênue que separa a ’Via da Vida’ da ’Via da Morte’."
(Julius Evola )