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Milloué (1905) – Brahma, Vishnu, Shiva

quarta-feira 14 de maio de 2025

Milloué1905

À primeira vista, um   observador superficial poderia pensar   que o Hinduísmo não alterou em nada   a antiga mitologia dos Brâmanas e dos Vedas. E, de fato, encontramos em suas escrituras sagradas e profanas todos os antigos deuses — Indra, Agni, Varuna, Soma, os Ashvins, etc. — com suas funções e atributos habituais. Os Purânas até expandem suas lendas com certa complacência, muitas vezes destacando aspectos desfavoráveis, como os desejos lascivos atribuídos a eles, especialmente a Indra, cujas aventuras amorosas (nem sempre gloriosas) rivalizam com as de Júpiter.

No entanto, embora esses deuses ainda sejam chamados de imortais (apesar de, na realidade  , desaparecerem no final do Kalpa), eles não possuem mais o poder ilimitado que tinham antes. Agora, são vistos como meros funcionários encarregados temporariamente da proteção e direção de diferentes partes do universo   ou de seus elementos, subordinados a uma Potência superior. Além disso — e esta é uma consequência inevitável do sistema panteísta —, são criações ou emanações de um dos dois   deuses que ocupam, conforme o caso, o lugar supremo: Vishnu ou Shiva.

 A Ascensão   de Vishnu e Shiva

Até hoje, não se conseguiu explicar satisfatoriamente como e em que circunstâncias esses dois deuses — que poderíamos chamar de "novatos" na mitologia brâmanica — substituíram Brahma (neutro) como Paramâtman (Alma   Suprema e Universal). Contudo, é possível situar sua ascensão aproximadamente entre os séculos V e I a.C..

  • No Manusmriti (Código de Manu  ), Vishnu é mencionado apenas uma vez (em um trecho tardio do livro   XII), e Shiva sequer aparece.

  • Sua primeira aparição   como grandes deuses ocorre no Mahābhārata e no Rāmāyana, onde já ocupam um lugar de destaque na crença   popular e onde sua rivalidade já está indicada.

 A Rivalidade Vishnu-Shiva e a Formação da Trimurti

Essa rivalidade, cada vez mais acentuada nos Purânas, sugere que, desde o início  , Vishnu e Shiva representavam duas seitas antagônicas:

  • Alguns estudiosos propõem que Vishnu personificava o elemento ariano, enquanto Shiva representava o elemento dravidiano, mas essa hipótese carece de evidências sólidas.

Mais tarde, motivos desconhecidos (talvez a necessidade   de unir as forças brâmanicas contra o avanço do Budismo  ) levaram a uma reconciliação aparente entre as duas crenças, resultando na Trimurti — a trindade   que reúne:

Deus   Função Guna (Qualidade)
Brahma Criador Rajas (Atividade/Paixão)
Vishnu Preservador Sattva (Bondade/Luz  )
Shiva Destruidor Tamas (Obscuridade/Ignorância)

Porém, essa união   é apenas superficial:

  • Para os Vaishnavas, Vishnu é o único Deus Supremo, enquanto Shiva e Brahma são apenas emanações superiores.

  • Para os Shaivas, Shiva ocupa esse papel, e Brahma e Vishnu são subordinados.

Brahma, embora mantenha a função de criador, quase não tem culto próprio — exceto no templo de Pushkar (Ajmer) — e só é adorado em santuários dedicados a Vishnu ou Shiva. Curiosamente, Vishnu incorpora três de seus avatares:

  1. Matsya (o Peixe)

  2. Kurma (a Tartaruga)

  3. Varaha (o Javali)

 A Unidade Primordial nos Purânas

Alguns Purânas sugerem uma origem comum para os três deuses, quase como um retorno ao monoteísmo  .

Segundo o Vayu Purana:

"No início do dia de Brahma, Mahadeva (Shiva), nascido de Prakriti, entrou no ovo cósmico e agitou intensamente Prakriti (matéria   primordial) e Purusha (espírito universal).
Dessa agitação surgiram as três gunas:

  • Rajas (Atividade) → Brahma (Criador)

  • Tamas (Obscuridade) → Agni (Tempo  )

  • Sattva (Bondade) → Vishnu (Preservador, em estado de equilíbrio)

Esses três deuses são os três mundos, as três gunas, os três Vedas e os três fogos. Eles são independentes, mas inseparáveis — nenhum existe sem o outro  . Shiva (Ishvara) é o Deus Supremo, Vishnu está acima do Mahat (Inteligência Cósmica), e Brahma, cheio de Rajas, cria."

Já o Bhagavata Purana afirma:

"No princípio, havia apenas:

  • Um único Veda: o Pranava (Om)

  • Um único Deus: Narayana (primeiro Brahma, depois Vishnu)

  • Um único Agni (fogo   sagrado)

  • Uma única casta

Foi Pururavas quem, no início da Era Treta Yuga, dividiu o Veda Único em três."

 Conclusão

Apesar da aparente multiplicidade   de deuses, o Hinduísmo evoluiu para uma visão   unificadora, onde:

  • Vishnu e Shiva emergiram como as principais divindades, absorvendo ou subordinando os antigos deuses védicos.

  • A Trimurti simboliza uma tentativa de síntese, embora cada seita mantenha seu deus preferencial como o Supremo.

  • Os Purânas revelam uma tendência monoteísta subjacente, onde todas as divindades são manifestações de uma única Realidade Absoluta.

Essa complexidade reflete a riqueza e a diversidade do pensamento religioso hindu, que consegue harmonizar pluralidade e unidade em sua cosmovisão.