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Castro Rocha – Filosofia de Machado de Assis?

sexta-feira 27 de junho de 2025

Contudo, como explicar a insistência na caracterização da “filosofia  ” de Machado de Assis  ? De fato, sua obra é atravessada por um   conjunto facilmente discernível de obsessões, cuja recorrência favorece a tese  , pois ajuda a criar a aparência de um sistema. Porém, tal abordagem parece ignorar que, muitas vezes, tanto necessidades internas à dinâmica do enredo quanto sutilezas relativas ao contraste entre personagens   podem exigir a defesa de determinada posição ou mesmo supor a contradição aberta com princípios expostos no parágrafo anterior. Trata-se, nesse caso, de recurso propriamente ficcional e não filosófico. Nesse sentido  , o leitor   identificará motivos constantes nos contos deste volume.

Em “O sainete”, por exemplo, Machado alude aos paradoxos do desejo mimético: se me amam, perco o interesse; se não me querem, apaixono-me. Na trama, a viúva Seixas ignora com calculada crueldade Maciel, até que descobre repentinamente seu “amor  ” por ele ao inteirar-se da paixão de Fernanda pelo jovem médico. Autêntica personagem shakespeariana, a viúva encanta-se com o futuro marido literalmente através dos olhos de sua amiga  . Na aguda intuição do narrador: “Se me miras, me miram, era a divisa de um célebre relógio do sol. Maciel podia invertê-la: se me miram, me miras; e mostraria conhecer o coração humano, — o feminino  , pelo menos.” Fenômeno   idêntico afetou a jovem e obstinada viúva Mariana, em “Três   consequências”. Ela decidira manter-se “moralmente casada”, recusando com veemência a ideia de novas núpcias. Bastaram, porém, passeios regulares à Rua do Ouvidor e visitas eventuais aos prazeres proporcionados pela corte para mudar de conceito e, sobretudo, de estado civil — “a Rua do Ouvidor e os teatros restituíram-lhe a ideia matrimonial”. A razão do câmbio é tão singela quanto poderosa: como resistir depois de “ter vindo ao atrito da felicidade   alheia”?

Em “Na arca —três capítulos (inéditos) do Gênesis” e “O segredo   do bonzo (Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto)”, Machado desenvolve uma divertida paródia de estilos literários, muito similar aos futuros exercícios lúdicos de Jorge Luis Borges  . Em “A igreja do diabo  ” a condição humana é a autêntica metamorfose ambulante, e a insatisfação fáustica é a única marca permanente. Por isso, Deus   fulmina seu rival eterno com a constatação humilhante: “Tudo   o que dizes ou digas está dito e rédito pelos moralistas do mundo  . E assunto gasto·, e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires.” Essa advertência revela, pelo avesso, a poética machadiana de apropriação de tópicos, estilos e épocas. Em outras palavras, uma vez que o repertório próprio à condição humana é necessariamente limitado, o segredo é tratar os temas de sempre como se fossem originais — tão inéditos quanto uma cópia elaborada. Numa linha semelhante, “História   comum” e “Apólogo” exercitam o modelo tradicional da fábula  , assim como “Uma excursão maravilhosa” flerta com o gênero do conto fantástico  . O ponto é relevante e merece ser   assinalado: a literatura machadiana também penso através do jogo   propriamente literário. Na ruminação da tradição   literária, e de todos os seus gêneros, o conto revela-se o espaço perfeito para testar a mão, estimulando ousadias, muitas vezes ampliadas nos romances.

Em “Questão de maridos” e “Ideias   de canário” o problema tratado é o caráter subjetivo da percepção   da “realidade  ”. Entre aspas, por certo. A suspensão na crença   em um possível núcleo duro da realidade constitui outro tema que atravessa a obra machadiana. A frase inicial de “Questão de maridos” sintetiza o enredo desse tipo de conto: “ — O subjetivo... O subjetivo... Tudo através do subjetivo, — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.” O desfecho é ainda melhor, esclarecendo a natureza   da diferença entre os maridos das sobrinhas do escolado professor: “Comparados os dois   maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...” A última frase do conto espelha o princípio, conferindo à subjetividade   condição objetiva, por assim dizer. Portanto, a relatividade dos valores   se impõe como o único valor absoluto   — e, ainda assim, nem sempre ou nem tanto; afinal, esta é uma seleção detextos machadianos... Aliás, “Ideias de Canário” foi publicado originalmente sob o título “Que é o mundo?”. E, no fundo, o ponto de interrogação vale por todo um conto.

Não desejo encerrar esta breve introdução sem chamar a atenção do leitor para as inúmeras reflexões do relojoeiro Machado de Assis acerca do tempo  . O terreno é fértil e a colheita promissora. Já no primeiro conto aqui coligido, “Uma excursão milagrosa”, o narrador rememora: “Era assim que os egípcios mandavam pôr um sarcófago no meio de um festim, como lembrança de que a vida   é transitória, e que só na sepultura existe a grande e eterna verdade  .” Em “Eterno!”, a temporalidade assume de vez o papel de protagonista: “Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho.” A temática reaparece em “Papéis velhos” na lembrança da transitoriedade da condição humana e, especialmente, do caráter efêmero de suas convicções. Brotero é um político amargurado com a aguardada nomeação que não veio e a caroável viúva que se foi, justamente com o adversário contemplado com o cobiçado cargo. Dois sonhos perdidos simultaneamente — o golpe foi duro e Brotero redige uma carta ainda mais áspera, renunciando à cadeira de deputado. Porém, reconsidera rapidamente a decisão ao reler cartas   sentimentais cometidas em sua juventude.· “Um dos eternos, escrito na dobra do papel, não se chegava a ler  , mas supunha-se. A frase era esta: ‘Um só minuto do teu amor, e estou pronto a padecer um suplício et...’ Uma traça bifara o resto da palavra; comeu o eterno e deixou o minuto. ” O leitor dos contos aqui reunidos talvez se contente com o simples segundo...

Identificar a relevância de temas recorrentes nos contos machadianos e, ao mesmo tempo, estimular a descoberta de novos motivos são os objetivos principais deste volume. Hora, pois, de começar a dedicar seu tempo à obra machadiana — e, se não for pedir demais, um tempo generoso, a fim   de ruminar os contos de Machado de Assis.


Machado de Assis. João Cezar de Castro Rocha (org.). Rio de Janeiro: Record, 2008